Admirável Mundo Novo é uma crónica da Threshold Magazine sobre as novas tecnologias na música e o impacto que podem vir a ter, desde novas maneiras de gerar música até à síntese de novos instrumentos.
DADABOTS é um nome que ainda não diz muito a muita gente, mas é possível que possa vir a ser um dos projectos mais ecléticos de sempre - desde math rock até black metal, os naturais de Boston, Massachussets, podem vir a criar, com particular facilidade, um pouco de tudo. O primeiro álbum, Deep the Beatles! começa por soar a um cruzamento entre plunderphonics e um pesadelo de pensamentos abstractos, deixando que, pouco a pouco, os The Beatles se deixem infiltrar na sonoridade deste projecto. Parecendo a sinopse de um álbum conceptual sobre a evolução da música, este disco é apenas uma consequência do algoritmo utilizado para gerar toda a música produzida pelos DADABOTS - usando um só álbum ou conjunto de álbuns de um artista, uma rede neuronal profunda (atualmente, o algoritmo de inteligência artificial mais utilizado e investigado) "ouve" estes álbuns e cria música nunca antes ouvida a partir deles.
O processo que permite que isto aconteça é algo relativamente bem estabelecido: ao processar um número de sons (i.e. músicas ou partes de músicas), e vendo o que acontece antes e depois, o algoritmo utilizado pelos DADABOTS - SampleRNN - é capaz de gerar novas músicas. Para além disso, quantas mais vezes ouve as mesmas músicas, mais se começa a aproximar delas no que toca às suas composições. Este processo, para uma sonoridade semelhante, é ligeiramente análogo ao que um artista humano faz quando ele próprio compõe música e é influenciado pela música que mais ouve. Mas haverá lugar para uma generalização deste pressuposto? - conseguirão os DADABOTS funcionar da mesma maneira que um John Zorn ou um Mike Patton, convergindo vários géneros no mesmo?
A resposta, por agora, é bastante provavelmente negativa - infelizmente, quando se trata de uma inteligência artificial generativa (capaz de produzir coisas do nada), a variabilidade que lhe apresentamos é o seu maior inimigo: se mostrássemos Abba e Death aos DADABOTS, seria muito improvável que o resultado fosse remotamente parecido ao Imaginary Sonicscape dos Sigh; na verdade, o produto final seria i) uma aproximação criminosa de uma cacofonia ou ii) música que soaria intermitentemente a Abba ou a Death, numa espécie de zapping nervoso pelo modo aleatório. Em vez de colmatar a variação com combinações engenhosas (hindustaani, jazz e rock em Mahavishnu Orchestra) ou questionáveis (hip-hop e metal em Limp Bizkit), este tipo de inteligência artificial vai basear a maneira como a música continua ao ouvir o que já aconteceu antes, com alguma possibilidade de combinar tudo o que já ouviu, mas sem conseguir aprender como o fazer. Essencialmente, é um modus operandi semelhante ao de um garoto a cozinhar pela primeira vez e achar que convergir um bife com natas e um cheesecake de morango num só prato é bem pensado.
Não obstante a este obstáculo aos DADABOTS e à sua SampleRNN, alguns esforços preferiram encarregar-se apenas da parte da composição e deixar a reprodução para meios mais bem estabelecidos - uma tarefa consideravelmente mais fácil, visto que não envolve a geração de uma música propriamente dita, que envolve sons, composição e criatividade. Exemplos de músicas concretamente compostas por uma inteligência artificial também podem ser referidos - Daddy's Car e Mr. Shadow, ao estilo dos Beatles (aparentemente uma referência para investigadores em inteligência artificial) e interpretada por um artista de carne e osso, bem como corais ao estilo de Bach, foram criados como parte da Flow Machines, um projecto da Sony Computer Science Laboratories. Magenta, um projecto de investigação fruto da Google Brain, criou uma série de abordagens e tentativas de resolver este problema, desde o AI Duet, uma inteligência artificial que aprendeu regras simples para poder acompanhar qualquer pessoa num registo de "duelo de solos", o Melody Mixer, que cria maneiras de criar transições entre duas melodias simples, ou o Beat Blender, que usa inteligência artificial para misturar batidas.
Para além da composição, a Magenta também se aventura na geração de sons "novos", tendo como exemplos catedráticos disso The Infinite Drum Machine, que usa sons do dia a dia para gerar novos sons de bateria e batidas ou (o meu preferido) NSynth, que consegue combinar dois ou mais sons num só - desde trompetes e sintetizadores até cães e gatos -, abrindo uma infinidade de possibilidades para novos timbres. Noutro polo, o Augmented Instruments Lab também traz novidades interessantes, como o New Acoustic Stringed Musical Instruments, um projecto que tenta descodificar digitalmente o que cria o timbre dum instrumento de cordas de forma a poder alterá-lo e criar novos sons, e outros projectos de cariz mais complexo e académico.
Apesar de tudo o que foi referido aqui ter sido posto nos termos mais simples possíveis, a investigação por detrás de cada um destes avanços é consideravelmente complexa e assenta na convergência de campos tão diversos como albegra linear, ciências computacionais e estatística; felizmente, não havendo necessariamente um sítio que garanta uma aprendizagem rápida, algumas pessoas escreveram uma série de artigos que facilitam uma compreensão pelo menos superficial de vários aspectos da inteligência artificial no geral ou naquela usada em situações artísticas e generativas (exemplos notáveis e simpáticos disto podem ser encontrados em What is Artificial Intelligence? In 5 minutes., Computer evolves to generate baroque music!, A Quick Introduction to Neural Networks, The Unreasonable Effectiveness of Recurrent Neural Networks ou Google's Deep Dream for Dummies, sem contar com uma miríade de TED Talks e vídeos no Youtube, para me ficar por alguns).
No fundo, é necessário reconhecer que o que foi aqui falado é relativamente compreensivo para o mundo atual, mas numa questão de anos (ou até mesmo meses) pode vir a ser redundante ou, pelo menos, superficial. Para além disso, este tipo de pesquisa abala uma série de concepções aparentemente humanas, como a criatividade, e abre precedentes para um número de questões ao transferirmos este tipo de "aprendizagem" para humanos: como é que a influência e o plágio podem ser separados será que é apenas uma questão de intenções ou qualquer influência tem algum grau de plágio? Numa altura em que o excesso caracteriza não só o nosso comportamento, como o que nos rodeia, haverá maneira de ser original? Quando é que algo gerado num meio académico deixa de ser pesquisa e passa a ser arte? Não vou tentar responder a estas questões por isto requerer um artigo à parte e análise mais série e ponderada de cada caso - utilizar uma só linha de pensamento para generalizar toda a variedade de novas tecnologias pode ser arriscado e redutor. A inteligência artificial já revolucionou a nossa vida, seja em sistemas de recomendação inteligentes ou deteção de spam, sendo agora capaz de mudar não só a maneira como ouvimos música, mas a maneira como a música que ouvimos é feita - resta saber se seremos capazes de processar esta nova informação.
Texto: José G. Almeida
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